“Eu não quero a miséria extinta no Senhora do O, do B ou do C. Quero acabar com ela toda, revoltar todo o mundo.”
A exploração da dicotomia entre desencanto e utopia regem o ritmo de Quarup (1967), a obra monumental do jornalista e romancista brasileiro Antônio Callado.
As viagens e o jornalismo proporcionaram ao escritor experiências cosmopolitas e regionais na mesma proporção. Essas vivências, paradoxalmente, afinaram sua sensibilidade para enxergar, segundo suas próprias palavras, "essas coisas que o brasileiro raramente vê". Esse olhar permitiu interpretar e retratar o Brasil como uma nação possível, embora ainda em formação, e inspirou um projeto literário de redescobrimento do país.
Com esse projeto, o escritor buscou fazer um novo retrato do Brasil, mantendo sempre o deslumbrado pela exuberância da nossa natureza e pelas potencialidades criadoras do povo mestiço. O projeto literário de Callado reflete um profundo amor e um olhar crítico sobre a nação que o Brasil era e, principalmente, da que poderia ser.
“Do mergulho no local e no histórico é que resulta a concretização desses temas universais. Assim, pelo confronto das classes sociais em luta no Nordeste, chega-se à temática mais geral da exploração do homem pelo homem e das centelhas de revolta que periodicamente acendem fogueiras entre os dominados. [...] Pela sondagem da consciência de torturadores brasileiros, chega-se a esboçar uma espécie de tratado da maldade, que nos faz vislumbrar os abismos de todos nós.” (Citação retirada do ensaio: Callado e a “vocação empenhada” do romance brasileiro”, de Ligia Chiappini).
A década de 1960 foi um tempo de esperanças utópicas rapidamente suprimidas pelo regime militar. Com seu romance, Callado chega com uma “ficção que pretende servir ao conhecimento e à descoberta do país” (idem), retratando um Brasil onde direitos foram retirados, pessoas desapareceram e a expressão artística foi censurada.
Nando, um padre em crise identitária, é o protagonista do romance. A partir de sua história individualizada, conhecemos camadas aprofundadas sobre a situação da igreja, dos padres e do intelectual que circula entre esses dois mundos. Inicialmente dedicado às suas obrigações religiosas, Nando vê sua fé e propósito abalados ao se envolver com os povos originários do Xingu. É interessante acompanhar sua utopia como um homem de fé se abalar após sua ida ao “coração do Brasil”. Parece que ele finalmente sai da teoria, do intelectualismo sem utilidade e conhece a vida de verdade, problemas de verdade, necessidades reais.
Quarup segue um caminho construído para sondar os avessos da história brasileira. Em certo momento do livro, lemos relatos de torturas, da ditadura e das brutalidades causadas. Porém, quanto mais Nando se aproxima das comunidades indígenas e dos camponeses nordestinos, mais é capaz de testemunhar as injustiças e a brutalidades sofridas. Essas pessoas “marginalizadas” – indígenas, camponeses –, são sistematicamente esquecidas pelas políticas públicas, abandonadas por qualquer iniciativa de desenvolvimento e progresso.
É de se imaginar que o livro teve um impacto significativo. Hoje, podemos observar que ele ‘serve’ como um registro histórico e um lembrete sobre resistência e opressão. E mesmo que, à primeira vista, o livro pareça estar situado em um contexto específico (ou distante), é impossível sair dessa leitura sem traçar paralelos temporais bem próximos da nossa realidade.
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