Tenho a percepção que nada no mundo consegue se igualar com a sensação de ler um bom livro. A relação imediata de ligação, a curiosidade pelos fatos, aquela sede constante que parece insaciável enquanto não lemos a última página. É uma sensação deliciosa, hipnotizante, viciante.
Quando iniciei a leitura de Oração para desaparecer (2023), novo romance da escritora Socorro Acioli, senti tudo isso novamente.
Uma mulher coberta de lama acorda com terra grudando seus olhos, enchendo seu nariz e orelhas, respiração ofegante e completo desentendimento do que se passa. É sufocante e angustiante testemunhar uma pessoa ser desenterrada viva. Um casal de idosos retira ela do túmulo. Por que ela está lá?
Relembrando essas cenas do início recordei o ponto exato em que o livro me ganhou: quando Cida, a mulher desenterrada nua, sem voz e quase sem vida tem o primeiro lampejo de consciência e entende que ali lhe faziam o bem, que as mãos da senhora que a acudia lhe devolviam dignidade.
Acompanhamos Cida fazendo o possível para relembrar sua história e ter a chance de reconstruir sua vida tendo apenas a língua portuguesa como porto seguro. Aqui, a oralidade é uma ferramenta poderosa de registro e memória. O romance nos guia por uma viagem para entendermos questões sobre pertencimento, amor, imaginação e memória, tão importantes para a formação de nossa identidade.
Cida paira como um fantasma, ouve versões da história do mundo e não consegue formular a sua própria. Oração para desaparecer é, também, uma história de amor abrangente. Em sua jornada, Cida compreende que “todos nós somos a invenção de alguém”, por isso, assume a decisão de viver a própria vida.
Vertentes de tradição portuguesa se unem a lendas de povos originários da região Nordeste do Brasil para representarem uma alegoria do mundo. Um romance mítico, bonito e cheio de esperança.
“Não sou mais ingênuo de acreditar que uma ordem única rege tudo, ou que nossa cabeça pode entender os desígnios do mundo. Não pode. Só nos resta aceitar e seguir vivendo porque estamos nessa aventura às cegas. Todos nós. Quando a gente acha que entendeu tudo, o caos aparece para relembrar que não somos coisa nenhuma”.
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