O primeiro livro que li de Roberto Bolaño foi 2666. Não conhecia o autor, menos ainda o livro. Fui tateando no escuro, tentando entender e me acostumar com o estilo até então tão novo e diferente para mim. Foi um choque. Me despertou uma paixão ensandecida, um desejo de largar qualquer outra coisa para me dedicar às páginas que devorava sem perceber o tempo passar.
Relembro 2666 para começar meu texto sobre a experiência de ler A pista de gelo - o primeiro romance de Bolaño publicado aqui - porque as comparações foram inevitáveis, e não sem razão.
Dinâmico e conciso, A pista de gelo é uma história que se encaixa no que chamamos de romance neo policial hispano-americano. Ele queria desconstruir o gênero clássico. Para isso, escreveu um livro que retira a importância central do enigma e sua resolução, alimentado por um herói derrotado. Toda a atmosfera que Bolaño constrói em A pista de gelo parece deixar um rastro de incerteza, fracasso e desilusão.
A história se passa numa cidade litorânea da Espanha. Temos três narradores. Inicialmente, senti confusão com essas três vozes porque não vi tanta diferença de estilo e construção. Parece que faltou acabamento, envolvimento. Talvez por ser uma de suas primeiras obras e ele ainda estar buscando o seu estilo. Os capítulos são curtos e deixam a sensação de dinamismo, nos faz querer continuar a leitura.
Lendo, me perguntei: O que há de mais mágico que uma pista de gelo no meio de um castelo em ruínas? A beleza para Bolaño está, inevitavelmente, associada ao efêmero e ao desastre.
A sina de Bolaño foi ter o desastre de uma vida erguida no constante sentimento de fracasso. Ele transfere essa visão para os seus romances moldando uma crítica que atinge ideais políticos e sociais, por isso, é comum conhecermos em seus livros a figura do herói derrotado, mas orgulhoso, porque sabe que deu tudo de si mesmo dentro de contexto e cenários aterradores.
O movimento de criação aqui, acontece a partir do processo de decepção. Se ele deseja romper os padrões do clássico gênero policial, ele começa fazendo isso nos próprios leitores, surpreendendo com narradores sem envolvimento nenhum com o crime, confissões inconfiáveis e a desestruturação da verdade absoluta. Afinal, como uma verdade pode ser absoluta num mundo caótico e instável como o que vivemos?
Assim como em 2666, é inegável o artifício criativo de Bolaño de tornar os leitores não apenas testemunhas de crimes e criminosos, mas peças fundamentais de responsabilidade. Se as entidades públicas (polícia, detetives, ministérios) parecem ter olhos vendados, armam filas burocráticas para se livrarem da responsabilidade de impedir e solucionar crimes, o leitor de A pista de gelo também termina se vendo mergulhado profundamente dentro desse sistema corrompido.
Inicialmente, podemos pensar que essa quebra de confiança pode afastar leitores, mas um movimento curioso acontece. Como a solução do crime perde a sua essência central de problema dramático do romance, ficamos envolvidos pelas pessoas, pelas reações das personagens. Então, a necessidade de solução e punição do criminoso vai para segundo plano, porque o mundo era caótico antes e continuará sendo após, mesmo que encontrem o culpado e façam as devidas punições.
A dissolução do sentido do castigo - já que ele não irá restaurar paz, justiça ou harmonia - só reforça a sensação que, de certa forma, todos somos culpados ao viver num Estado e Sistema corrompidos.
Com isso, sei que saímos com uma espécie de visão catastrófica do mundo e dos sentimentos, mas que está inserida em contexto de belezas fugazes que tornam a experiência de leitura única e inesquecível.
Todos estamos acostumados a morrer de tempos em tempos e tão pouco a pouco, que a verdade é que estamos cada dia mais vivos. Infinitamente velhos e infinitamente vivos.
O livro foi lido no projeto do Nossa Literatura de ler a obra completa de Roberto Bolaño em ordem cronológica. Quer participar? Para saber mais leia aqui.
Agradeço aos estudos imprescindíveis de Julia González que serviram de base para o desenvolvimento do texto e questionamentos acerca do livro. [The irrelevant mystery, the involuntary detective, the melting clue: notes on La pista de Hielo, a neopolicial by Roberto Bolaño.]
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